sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

SEM RECEITA


“primeiro lenta e precisamente arranca-se a pele/ esse limite da matéria/ mas a das asas melhor deixar pois se agarra à carne como se ainda fosse voar/ as coxas soltas/ soltas e firmes devem ser abertas e abertas vão estar/ e o peito nu com sua carne branca nem lembrar a aproximação do coração/ esse não/ quem pode saber como se tempera um coração?/ limpa-se as vísceras/ reserva-se os miúdos pra acompanhar/ escolhe-se as ervas/ espalha-se o sal/ acende-se o fogo/ marca-se o tempo/ e por fim de recheio/ a inocente maçã que tão doce úmida e eleita/ nos tirou do paraíso/ e nos fez assim/ sem receita.” (Canção de Alice Ruiz e Zé Miguel Wisnik)
E mais um ano se inicia. Um novo Ano Novo sem receita, feito você e eu e todo mundo. Quais serão os temperos dos dias vindouros? Que gosto terão as noites de sábado, as tardes de domingo? Sem falar nas manhãs das tantas segundas. Quantas horas doces alegrarão nosso apetite voraz? Quantas outras, amargas, salgadas demais, teremos que engolir? E valha-me Deus, o que faremos com aquelas insossas, sem perfume algum? Que momentos nos deixarão marinados na emoção? “Quem pode saber como se tempera um coração?” É que cada coração se tempera diferentemente. Não há cozinheira ou cozinheiro que detenha o segredo da receita. Nem há receita. Alguns precisam de sal, pimenta talvez... Outros, um punhado de açúcar pra disfarçar a acidez... O outro é duro demais, de cozimento lento e paciente (há de ter muito talento quem com esse se meter!)... Para aquele outro, frágil, de manuseio delicado, basta um punhadinho de ervas-finas e pronto, o tempero fica no ponto... E tantos outros...
Não há muito o que fazer, a não ser ficar atento, prestar atenção, pois cada coração tem seu ponto exato de cocção.
Só peço que não me falte a tal da inspiração, pra te encher de receitas boas que te abram o apetite, te levem pra cozinha e te alimentem também o danado coração. Feliz 2011!
Bon appétit!

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

NA TUA AUSÊNCIA



Há dias não escrevo. Não é por falta de tempo, de assunto bom ou por carência de boa comida. É preguiça, só pode. Preguiça de começar sem saber no que vai dar. Escrever ora adoça, ora azeda. Não me julgue, isso acontecia até com Clarice, por que não haveria de acontecer comigo? Mas é fim de ano e fim de ano é coisa especial. Tenho urgência! Resolvi apostar na afirmação dos franceses: “l’appétit vient en mangeant” (o apetite vem comendo) logo, a vontade de escrever vem escrevendo (?). Reuni meus livros, meus cadernos de receitas e passei a folhear um a um em busca de estímulo... Nada. É mais ou menos como ter a geladeira abarrotada de delícias e querer comer outra coisa, você sabe como é. Deixei pra lá. Meu deixar pra lá durou um punhado de dias. Ontem, porém, fuçando Comida e Bebida (PubliFolha), um livro recheado de contos, crônicas, poemas, receitas, canções e outros temperos pra vida, li na página 103:
FRUTAS VERMELHAS
Como frutas vermelhas, Na tua ausência, Tiro a roupa, Cometo indecências, Não te apresento, Minha livre docência, Porque ela não passa, Pela censura, Sou o que seria, Tua loucura, E a tua cura, Mas você, Ainda verde, Vai adiando, A experiência, E ainda usa, De grandiloqüência, Pra disfarçar, Sua resistência, Eu, pra não perder, A paciência, Como frutas vermelhas, Na tua ausência. (Canção de Alice Ruiz/ Paulo Tatit)
Fui pra cozinha. No congelador um restinho de framboesas, amoras e morangos esperavam por mim. Fiz uma calda espessa com as frutinhas. Coei grosseiramente. Deixei esfriar... Preparei um manjar branquinho com leite de côco. Virou uma espécie de escondidinho de frutas vermelhas. Decorei com lasquinhas de castanha do Brasil (ex-castanha do Pará) e finalizei com um raminho de hortelã. Ficou lindo, até vou fazer no Natal! Cometi a indecência de comer o pote inteiro (era pequeno). Bom demais! Descobri o que estava acontecendo comigo. Era saudade, só saudade. Depois passou. Voltei a escrever.
Bon appétit.