quinta-feira, 25 de junho de 2009

ÉRAMOS TRÊS NO DIA DE REIS (memória gustativa)

Deserto do Marrocos, 6 de janeiro de 2003, em direção à Ouarzazat (pelo menos era o que tínhamos em mente). GPS pra quê se todo mundo sabe que o sol nasce no leste e se põe no oeste... Porém as horas desfilam diante dos nossos olhos cansados de procurar no vazio, cheio de areia, algo que pareça uma estrada. O carro, longe de ser um 4x4, não faz feio no areão marroquino. Bem próximo dali, uma placa adverte em árabe e em francês: “Proibido acampar nesta área”... Por Allah, quem, em sã consciência, acamparia no meio do nada? Continuamos depois de fotografar aquela placa que mais parecia uma piada de mau gosto. As horas passam, a temperatura começa a cair e uma pitada de desespero confirma: estamos fritos! O pôr-do-sol carameliza a paisagem e adoça por alguns minutos o gosto amargo do medo que nos impõe o desconhecido... No alto de uma pequena colina, o vulto de um homem, trajando longas túnicas cinzas e com ares de Omar Sharif (essa parte é fruto da minha imaginação, dizem as más línguas) parecia “nos” aguardar pacientemente... InchAllah, não era nenhuma miragem! Encontramos Mohamed, digo, fomos encontrados por Mohamed que nos guiou até o outro lado da colina e nos acolheu em sua casa, com suas três mulheres e seus não sei quantos filhos e filhas. Nossa desventura no deserto acaba aqui, onde começa uma deliciosa aventura gastronômica... Depois de um breve (e cômico!) ritual que nos foi imposto, cabelos presos e cobertos, mãos devidamente asseadas, passamos à sala principal (e única!), ampla, com paredes nuas e tapetes coloridos cobrindo o chão irregular, onde nos sentamos diante de uma mesinha redonda e baixa. Almofadas de cores vibrantes foram colocadas à nossa disposição, como se nossas costas e cotovelos fossem nobres merecedores de um repouso real. Ficamos ali, como se fosse uma marinada de almas, saboreando o aconchego, sob olhares curiosos e risonhos, cheios de prazer em servir. Éramos três desconhecidos (com)partilhando a intimidade desta família de hábitos tão diversos. Mohamed sentou-se conosco e um enorme recipiente de cerâmica com uma duna de couscous fumegante foi colocado diante de nós, sobre ela, um frango inteiro, dourado e brilhante, impregnava o ambiente com um delicioso perfume de cominho. Era de encher os olhos, dar água na boca, comer de joelhos e literalmente, lamber os dedos, pois ali se comia com as mãos (porém só a mão direita podia ser levada à boca, mas isso é uma outra história...). Cada um diante de sua parte fraternalmente dividida e fartamente guarnecida com molho de três ou quatro legumes cozidos, saciava um apetite voraz. Carcaças e caroços de azeitonas anunciavam o final da refeição e, neste exato momento, a expressão “tirar a mesa” foi encenada: nossa mesinha foi literalmente arrancada do nosso campo de visão por dois dos filhos. Tive vontade de rir... Minutos depois foi recolocada à nossa frente, limpíssima! E um novo ritual de lavagens de mãos foi proposto, preparando os dedos para rasgar as cascas de suculentas laranjas frescas servidas como sobremesa. Depois delas, um chá doce de menta, espesso e quente coroava o momento que marcaria para sempre minha memória gustativa. Confesso que tentei inúmeras vezes (todas em vão) preparar um couscous igualmente saboroso, na esperança de resgatar parte daquele momento de puro deleite. Brillat-Savarin escreveu: “Entreter um convidado é encarregar-se de sua felicidade durante o tempo todo em que estiver sob nosso teto”. Mohamed, simplesmente, o fez.

Nenhum comentário:

Postar um comentário